n o n a d a

shirkers (2018)

"it's more than a physical time capsule, it's not just scenery and disappearing buildings, but its also people in those places"

! atenção: o texto abaixo pode conter spoilers (?) !



shirkers começa em singapura com sandi tan, jasmine ng e sophia siddique. uma menina de 19 anos produzindo seu primeiro filme com duas amigas nas férias de verão de 1992. fora georges cardona, o diretor, — um homem duas vezes mais velho que todas outras pessoas envolvidas no filme — ninguém tinha experiência prática com cinema. é empolgante e assustador ver sandi contando essa história mirabolante sobre como george pegou todas as fitas pra fazer a pós-produção e desapareceu logo em seguida. vinte e cinco anos depois shirkers se transformou em um documentário sobre resgatar narrativas e navegar por traumas compartilhados. é um filme sobre amar fazer filmes e encarar a perda súbita de um grande esforço coletivo. como processar que seu primeiro projeto grande foi sequestrado?

creio que de muitas maneiras shirkers é quase uma história de terror. sandi chega a dizer que o filme original virou uma lenda urbana do cinema singapurense, um fantasma. o mito do filme roubado. se por um lado o enredo do sequestro das fitas é assombroso, o resto do documentário é estranhamente terapêutico. alguns momentos me deram a impressão de que eu estava assistindo algo tão pessoal que não foi feito pr'eu ver. essa sensação surgiu ao ver sandi e jasmine discutindo no meio de um depoimento. vinte e cinco anos não foram suficientes pra lidar com todo o acúmulo de dor e frustração. sandi diz que inevitavelmente sempre que elas conversam sobre shirkers é como se tivessem dezenove anos de novo. o sentimento de estar vasculhando o lixo do vizinho aparece novamente quando sandi narra com pesar que durante muito tempo aguardou esperançosa que george em algum momento fosse aparecer com o filme pronto. nessas entrevistas as pessoas compartilham de forma muito pessoal suas lembranças do tempo que investiram nesse grande projeto que nunca se materializou. ninguém chegou a assistir as gravações. muito além de um filme sobre um filme roubado, shirkers também é sobre memórias corrompidas e possibilidades.

quando falo de shirkers aqui, falo dos dois filmes. porque existe essa dimensionalidade que se confunde dentro do documentário: aos poucos você vai se submergindo tanto na história que em algum ponto ela beira virar uma ficção fantasiosa extremamente elaborada. muito disso vem do extenso arquivo pessoal que é apresentado em estética de zine — a amizade de jasmine e sandi, afinal, começou aos 14 anos com a publicação de uma zine independente chamada the exploding cat — e oferece uma carga sentimental adicional pra a história. estamos falando de vinte e cinco anos de cartas, posters, desenhos, fotos e vídeos de viagens.




uma parte essencial do filme pra mim é a sua relação com o espaço. e pra sandi também. ela ressalta algumas vezes como mesmo em 92 já se preocupava em eternizar como locações locais que em breve não existiriam mais: como as lojas de manequins e uma padaria antiga que ela frequentava. o conjunto é, de muitas maneiras, uma cápsula do tempo que guarda em si muito mais que só a marcação espacial dos anos que se foram. mesmo na época do filme as três meninas já não moravam mais no país. vinte e cinco anos após, a única que voltou pra singapura foi jasmine, que em 1992 estudava em nova york.

segundo sophia, na época das filmagens eram pouquíssimas as produções caseiras de filmes em singapura. e o roteiro original de sandi era ambicioso. nele, ela interpretava "s", uma adolescente assassina que sequestrava pessoas como parte de um jogo com propósitos desconhecidos. amigos, familiares e vizinhos subitamente viraram atores. sandi e sophie contam que improvisavam multidões fingindo que alguém tinha se acidentado, lembram que certa vez invadiram um asilo de idosos durante as filmagens e que gravaram escondido com um cachorro imenso dentro de um supermercado quando o gerente deu as costas. a surpresa é que enquanto elas narram essas cenas, estamos assistindo todas elas. vemos cenas do filme desde o começo do documentário. de alguma forma, depois de vinte anos de mistério, as fitas foram recuperadas. mas não da forma que sandi esperava.

fico pensando em todas as possibilidades que foram perdidas por consequência das ações de georges. e em como deve ter sido esmagadora a sensação de passar vinte anos falando sobre algo que não existia. sandi conta que durante esse tempo de vez em quando esbarrava em cenas que lembravam a filmagem de shirkers e ficava assombrada pelo fantasma do seu filme perdido, sentindo que de alguma forma ele estava tentando lhe enviar um sinal. alguns dos filmes que ela cita são rushmore, ghost world e heathers. shirkers, o filme original de 92, se terminado e distribuído como planejado, teria sido um sucesso? um marco no cinema de singapura? teria mudado essencialmente a carreira de sandi, jasmine e sophie desde o ínicio? ou seria só mais um filme caseiro produzido por um grupo de amigas? acho difícil acreditar nessa última opção. vi o documentário convicta de que se pudesse ver o filme original completo falaria dele sem parar durante um bom tempo.

em dado momento, ao falar de george, sandi diz o seguinte: "whether his stories were actually true seemed beside the point. i loved his storytelling. and how his stories made time and place and truth absolutely porous". uma frase que também poderia facilmente ser dita sobre ela mesma. na construção de shirkers — o documentário! mas também o filme — conheci um pedaço importante da história dessa pessoa anteriormente desconhecida e passei o resto do dia intrigada pensando em como sem querer esbarrei numa obra que explora memória, espaços, traumas, relacionamentos e artes de um ponto de vista muito singular e próximo. sinto que em outras circunstâncias (e com um pouquinho mais de disposição) eu poderia estar ali no meio fazendo a mesma coisa com meus amigos. e faço, de outras formas. shirkers (2018) é a ressignificação de um trauma através do cinema e é na minha memória recente o filme que mais mexeu comigo em anos.

★★★★★